Na vida, existem pessoas que nos marcam ferrando a nossa memória para sempre. Na minha infância e adolescência em Afogados da Ingazeira, onde corri calçadas descalço e de calças curtas, Beto de Milinha, uma doce figura que veio ao mundo cego, sem nunca me enxergar nem ter a mínima noção da minha estatura física, me trouxe simbolismos do que mais tarde pude ter a certeza de evocar e sentir a verdadeira essência viva da alma.
Carlos Alberto P. da Fonseca, o Beto de Milinha, era primo pelos laços fraternais dos Fonseca que desbravaram o Pajeú procedentes dos mares portugueses. Meus bisavós são de Porto e certamente o sangue é o mesmo que movia o coração do adorável ceguinho, que morreu ontem no Recife depois de passar por tratamento de saúde. Meu primo morreu sem ter a exata noção da beleza do mundo. Nunca seus olhos se abriram para contemplar o amor simbolizado no vermelho de uma rosa, enxergar os pássaros que cantavam ao acordar ou simplesmente apreciar a formosura da sua Afogados, que tanto amou.
Morreu aos 76 anos. Beto de Milinha, apesar de cego, conhecia a história dos personagens da cidade como ninguém. Me reconhecia pela voz. Bastava eu bravejar: “Oi, Beto”. De supetão, me respondia: “Carinha”, meu apelido na cidade. Eu gostava de saber dele a impressão sobre gente famosa. Assim, eu provocava: Tio Coió, Beto, é o quê? Ele respondia: “Muito sabido”. Seu Zezito Sá? “Metido, não compra nem jornal”. Meu pai Gastão: “Amarrado”. Eu morria de rir.
Beto era um personagem marcante da cidade. Nunca teve um guia, com exceção da sua mãe Milinha. Perambulava pelas ruas com frequência. Seu GPS era o tato, nos pés e nas mãos quando queria ter a certeza, por exemplo, que adentrava na loja comercial do meu pai, frequentador assíduo. Era bem informado. Vivia de ouvido colado no radinho sintonizado na rádio Pajeú, canal pelo qual passou a me ouvir falando de Brasília.
Quando passou a me conceituar como jornalista via a mesma rádio Pajeú já não me chamava mais de Carinha. Enchia a boca de felicidade e gritava: Magno Martins! E ainda repetia o refrão: “Falou, tá falado”. Beto era extremamente curioso. Me perguntava sobre tudo: Brasília, Governo, economia, minha família, meu trabalho e até os roteiros das minhas viagens em missão jornalística.
Era uma grande figura! Existem pessoas que tornam nossa caminhada mais significativa, pela companhia, pelo apoio, pelo carinho. E porque nos tornam melhores. Aprendi a ter a exata noção do quanto são ricos os ensinamentos das pessoas simples e belas com Beto. Ele me proporcionou, sem nunca saber, o aprendizado da melhora como ser humano. Ensinou-me que um tombo não é motivo para desistir, é no máximo um atraso para caminhada em busca do que se deseja. Quando enxergo que sua caminhada foi tão dura sem visão, olho em meu redor e parece vê-lo ensinar que quando a caminhada fica dura, só os duros continuam caminhando.
Nunca somos os mesmos, mas sabemos mais uns dos outros. E é por esse motivo que dizer adeus a Beto de Milinha se torna complicado. Na longa caminhada da vida vou sempre lembrar dele. É preciso ter consciência que, apesar da multidão, o fardo da vida se carrega sozinho. Cada pessoa sabe a dor que carrega dentro do peito.
A de Beto foi a dor mais profunda de não ver o mundo ao seu redor. Tem gente na vida que, embora tenha olhos para ver, é cega de sentimentos. Esses deveriam invejar cegos como o Beto que Deus levou ontem, porque ele tinha a mais bela virtude dos homens: a vantagem de amar as pessoas pelo que elas são e não o que parecem.
Fonte: blogdomagno

Muito lindo texto e merecido por Beto, pessoa muito especial pra nós da asavap.